Eu passei 20 dias do Japão. Três semanas inteiras entre luzes, natureza e comidas feitas de plástico expostas na fachada dos restaurantes. Eu sempre acho um pouco tosco dizer que viagens mudam a nossa vida, mas a minha ida pro Japão mudou algo dentro de mim. Mais especificamente, é como se eu tivesse encontrado algo que eu já sabia que iria encontrar se procurasse com cuidado. Eu vinha há algum tempo sabendo que ia amar o Japão. O Japão é muito. Ao mesmo tempo, é um país focado em detalhes. É preciso estar atento para encontrar aquilo que realmente importa. Por incrível que pareça, o Japão é um país que me cabe. E são poucas as coisas que nos cabem.
Eu tenho muito a falar sobre as coisas que encontrei no Japão, mas quero começar falando da minha experiência no Martha Bar, um listening bar tradicional de Tóquio que visitei no meu último dia de viagem. Quero falar dessa experiência antes que a experiência se perca. Quero falar porque eu preciso registrar aquela noite para além da minha memória.
Um listening bar:
Em primeiro lugar eu vou precisar ser um pouco Ed Motta e te explicar o que vem a ser um listening bar. Pegue seu vinho. Como o próprio nome sugere, o listening bar é um bar de escuta. Eles surgiram como cafés de Jazz em que as pessoas iam para ouvir Jazz em um sistema de som digno da casa do Ed Motta enquanto tomavam um uísque e conversavam pouco. As regras dos listening bars mais tradicionais são bastante rígidas. Não se pode conversar alto, não se pode tirar fotos, não se pode importunar o ambiente com estímulos externos. O importante é a música. É um lugar que certamente o Ed Motta frequentaria. Eu tenho certeza, inclusive, que ele já frequentou. Na minha cabeça, era um lugar para pedantes.
É preciso ter em mente que os japoneses gostam muito de música. Visitei uma loja de discos em Tóquio que deve ter sido um dos lugares mais fascinantes nos quais pisei. Tower Records. É famosa. Eu ficaria horas lá. Eu fiquei algumas. Versões raras de vinis que nunca vi no Brasil. Versões em japonês de Tom Jobim e David Bowie. Tudo de mais novo que existe na música misturado com uma sessão inteira de Jazz tradicional. O som da loja fazia com que até o Lover da Taylor Swift (era o disco que tocava no momento) se tornasse uma obra de arte. Você ouve sutilezas de som que com certeza não ouve em casa com seu fone de ouvido. E olha que eu nem ligo muito pra essas coisas.
Pelo pouco tempo que passei no Japão, pude perceber que eles prezam muito duas coisas: qualidade e privacidade. Existe no país como um todo um imenso respeito pelo espaço do outro. Ninguém fala alto demais, ninguém grita e é considerado mau educado comer na rua. O conceito de listening bar faz muito sentido em um país como aquele. É um lugar onde você vai para ouvir boa música e beber boa bebida sem ser importunado. Um pacto coletivo de ficar quieto ouvindo uns disquinhos. É quase algo que só parece ser possível lá. E de fato não existem muitos listening bars em outros lugares do mundo. Ao menos não tão rígidos. Ao menos não que eu saiba. Veja bem, eu não conheço todas as coisas do mundo.
The sound of silence:
No roteiro que fizemos de Tóquio minha única exigência era ir em um listening bar. Portanto ficou a meu critério escolher em qual nós iríamos. Em qualquer pesquisa sobre os melhores bares de escuta da cidade, você sempre vai achar um nome recorrente: Bar Martha. Mas assim que você encontra o estabelecimento no Google, você tem uma surpresa: avaliação deles é de 3.1. Não são poucos os relatos de pessoas dizendo que aquele é o pior lugar que elas já visitaram.
Alguns visitantes reclamam que os funcionários são rudes; outros contam que foram expulsos por conversar demais; alguns não puderam nem entrar. Há histórias desconfortáveis sobre o fato dos funcionários do bar passarem o tempo todo avaliando os clientes. Tem uma matéria no The Guardian falando sobre o lugar cujo o título é “Bar Martha: o lugar onde o cliente nem sempre está com a razão.". Eu amei a matéria, mas não posso mentir que num primeiro momento tive medo. Regras rígidas, gente ríspida, a sensação de ser controlada. Será que era isso mesmo eu queria?
Em uma pesquisa mais minuciosa eu percebi que sim. Existem outros listening bars na cidade mas eles já parecem mais um lugar qualquer onde há um DJ. E, além disso, algumas avaliações diziam pra mim o que, naquela altura, já parecia óbvio: se você souber se comportar, se você gostar de música, a experiência pode ser muito agradável. Gosto especialmente de uma review que dizia “se você for um turista normal e não um selvagem, você vai gostar muito do lugar". Me apeguei nela.
The Zephyr Song:
Chegamos ao Martha Bar às nove e meia da noite de um sábado, nossa última noite no Japão. Eu sabia das regras: sem fotos com o celular, sem conversa. Fiquei com tanto medo de ser julgada pelo staff que optei por não usar uma camiseta de banda. O recepcionista nos atendeu, perguntou se já conhecíamos o bar e foi gentil ao nos apresentar as regras: nada de falar alto, nada de tirar fotos. Havia uma pequena espera então ficamos num balcão logo na entrada do bar. O barmen dali usava uma camiseta do Depeche Mode. Sorri mais tranquila. Mal tínhamos entrado e a responsável pelos vinis colocou The Zephyr Song do Red Hot. Sorri. Atrás de mim, alguns clientes conversavam em um tom um pouco mais alto do que eu permitiria no meu próprio bar de escuta. Ninguém usava demais o celular, mas usavam. O Bar Martha era menos rígido do que eu imaginei e ainda tinha uma bela carta de Whiskies e salgadinhos à vontade. O som era algo realmente espetacular. A parede de vinis era maior do que a coleção do Ed Motta.
Depois de um tempo ficou claro que a sala de espera era uma espécie de teste. Clientes barulhentos pegavam as mesas mais longe da música. Clientes sozinhos iam direto pro bar. Eu e meu namorado não fomos pro bar mas ficamos na mesa imediatamente em frente a DJ. Era uma mesa que era quase um banquinho de espera de ponto de ônibus e que dava dor na bunda? Sim, mas passamos no teste. Ficamos frente a frente com a DJ. Ela usava uma camiseta do Red Hot Chilli Peppers. Californication.
O som do vinil:
A partir do momento em que eu sento em frente a DJ começo a achar difícil encontrar palavras para traduzir a experiência. Ela tinha dois tocadores de som e parecia saber exatamente onde ficava cada vinil. E eram muitos. Em uma sintonia fina ela trocava de música japonesa para Eliott Smith passando por John Mayer e indo pra algo dos anos 1970 que eu nunca tinha ouvido falar. A DJ do Bar Martha era menos pedante do que alguns dos meus amigos e de metade dos homens que já conheci. O modo como ela passeava por canções cafonas do Wham! e misturava aquilo com Thelonius Monk era algo que eu dificilmente pensaria em ver em qualquer outro lugar que não fosse o Japão. Tudo fazia sentido. Eu só usei meu celular pra fazer Shazam das músicas que eu não conhecia (e eram várias). Não mandei mensagens a ninguém, não tirei fotos. Estive presente.
Sempre achei que ser DJ era uma espécie de arte. É preciso saber conectar as energias das canções escolhidas e entender o público. A DJ do Martha Bar era uma artista.
Em uma dada hora ela tocou Stella Donnelly. Uma dessas cantoras indies que você quase tem certeza que só você e mais cinco pessoas conhecem, mesmo sabendo que isso não é verdade. Meu namorado olhou pra mim e disse “essa parece uma música que ela tocou pra você". E eu acho que de certa forma era. Em um momento ela olhou pra gente e sorriu. Talvez eu não devesse ter tido tanto medo do Bar Martha se tivesse entendido desde o princípio que as coisas são simples: pessoas que gostam muito de música sabem apreciar música sem muito esforço. Quem foi expulso do Bar Martha certamente foi pra lá querendo outras coisas para além de pura e simplesmente ouvir música. E, nesse caso, você não vai em um listening bar. Você vai num bar e só. Acho que a culpa era muito mais deles do que do bar.
Blackbird singing in the dead of night:
Tendo a preferir shows solos ao invés de festivais. Acho que pra um show ser transcendental é preciso que o artista e o público estejam em uma mesma frequência. É uma sintonia fina. Isso até acontece em festivais, mas é muito mais frequente em shows solo porque todo mundo já está ali para um objetivo comum: ver aquele artista em específico. Me lembro muito do show do Radiohead em 2009 em que o público começou a cantar a parte do rain down rain down de Paranoid Android assim que a música acabou e o Thom Yorke veio se juntar ao coro com o violão. Aquilo parecia um culto, é realmente algo que te aproxima do sagrado. Música constantemente me aproxima do sagrado.
O conceito do listening bar me parece o mesmo de um show solo: se você junta várias pessoas com um objetivo comum, é muito mais fácil que a experiência fique mais próxima do Sagrado. A DJ teve uma sequência bonita e inesperada quando colocou um medley de Paul Mcartney num laser disk projetado na parede do bar; emendou com um Beatles e fechou com Beyoncé cantando Blackbird. Um cliente perguntou quem era a cantora de Blackbird e ela disse rindo: Beyoncé.
Na minha cabeça o Bar Martha seria um lugar dez vezes mais pedante do que um espaço onde a responsável pelo som usa uma camiseta do Red Hot e coloca John Mayer pra tocar. Talvez eu tenha me esquecido do princípio que me fez amar música no começo de tudo: tudo aquilo que te toca é boa música. O Bar Martha parece ter entendido esse conceito. Todos os clientes que avaliaram mal o bar, não. Uma das avaliações ruins do bar inclusive citava Ed Sheeran. “que tipo de bar de música acha que Shape of You do Ed Sheeran é boa música?”
Felizmente era o Bar Martha.
Você chora diante da beleza?
Em alguns momentos, enquanto estive em completo silêncio tomando um Whisky e curiosa pra saber qual música ela ia colocar depois que a que eu estava ouvindo terminasse, eu senti vontade de chorar. Poucos lugares me deram uma experiência tão completa como o Bar Martha. É muito poderoso ficar em silêncio ouvindo música, bebendo whisky e observando pessoas.
Tinham ali grupos de amigos (esses sempre eram colocados nas piores mesas); um homem sozinho que levou a sua própria garrafa de whisky pra se juntar a coleção que ele já mantinha no bar; um homem solitário que fumava cigarros e tentou uma conversa com a DJ que a deixou claramente um pouco irritada; uma mulher indiana de vestido vermelho que comia amendoins e sorriu feliz ao som de Beyoncé; meu namorado me dizendo baixinho quais músicas gostou e quais odiou e emendando um “acho que eles gostaram da gente"; um outro indiano pego no banheiro tirando fotos (que são proibidas) e tendo que mostrar o celular sem elas.
No fim de tudo achei o Martha Bar até muito permissivo. No meu listening bar possivelmente as pessoas teriam que ficar ainda mais quietas. Mas talvez seja só uma questão de manter realmente perto apenas quem se importa. Uma dessas lições que servem pra um bar de escuta e pra vida.
Um pouco bêbada no táxi depois de duas doses de Whisky e um Old Fashioned, eu tive muito o que agradecer. A vida às vezes é uma questão de encontrar os lugares certos. Um lugar onde você caiba. Se eu morasse em Tóquio, eu voltaria várias vezes sozinha ou não para o Martha Bar. E talvez até deixasse lá a minha garrafa de Whisky. Do outro lado do mundo, é possível que algum lugar pareça casa. Essa é a magia de existir.
Afinal, o que é a Vida?
2024 foi um ano em que tive questões. No pior momento, parei inclusive de ouvir música. Naquela época eu jamais pensei que pudesse ser tão plenamente feliz, meses depois, em uma viagem pro Japão. Já disse aqui em alguma newsletter que os japoneses tem uma palavra chamada Satori, que significa compreensão. Aquele pequeno momento em que você compreende o mundo. Vivo em busca desses momentos. No Japão tive vários desses. E acho que nas mínimas e nas máximas experiências, quando você compreende tudo você entende que viver é doloroso, mas é bom. Estar em Satori é uma questão de milésimos de segundo. Acontece com uma bobagem. Mas ressignifica toda uma existência.
Eu fui uma adolescente com muitas questões. Muito solitária às vezes. Em algum momento conheci Bob Dylan. Gostava muito de “like a rolling stone” porque eu sabia como era me sentir como uma pedra rolando por aí. Naquele tempo eu achava que existiam muito poucas pessoas como eu no mundo. Ao longo da vida fui descobrindo que não é verdade. Essa música tocou no Bar Martha. Me vi em muitas pessoas naqueles bar. A verdade é que me vi muitas vezes nas pessoas, ao longo desses muitos anos. Assim como no Martha Bar, a vida é uma questão de manter quem enxerga o que você vê mais perto. E de tentar estar sempre disposto a entender o que importa.
O listening bar pra mim é foi lugar de conforto. Um lugar onde eu caibo. Queria ir sábado no Bar Martha, mas estou em Londrina-PR. Penso então em colocar meus discos e ficar quieta tomando um Whisky. Sei que não vai ser a mesma coisa, mas talvez a vida também seja uma questão de entender que algumas experiências vão te marcar feito tatuagem. E por mais que você tente repetí-las, você sabe que certas coisas só se vive naquela intensidade uma vez. De certa forma, está aí também a beleza.
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É possível que várias das próximas newsletters falem do Japão de um jeito ou de outro. Conforme vou voltando ao fuso e a vida sinto vontade de relatar tudo aquilo que senti.
Essa é a playlist o Bar Martha. Algumas canções faltam e existem na internet, mas não no Spotify. Ela realmente cavucava longe. Há também algumas músicas que esqueci de colocar pra rastrear. Essas ficam na memória.
Até a próxima newsletter.
Véspera de aniversário, essa semana me peguei quase tendo de novo uma crise de angústia, tal qual descreve Rosa Monteiro, depois um longo e satifastório período sem crises. Satori. Meus olhos encheram d'água. É isso a vida é feita de algumas crises de angústias mas "Satori" faz tudo valer a pena. E a arte, seja na música, seja num amontoado de palavras que a gente lê e se emociona, faz a gente se sentir menos solitário no mundo. O japão passou a ser uma viagem dos sonhos desde que me descobri na caixinha dos "introvertidos" e "melancólicos". Satori <3
Que delícia de texto, Larissa! Quis conhecer o Japão, conhecer o bar, a DJ e você. Qual playlist tocaria no seu Bar Larissa?