Quando eu tinha uns quinze anos, achei nas Lojas Americanas um CD do Kid Abelha chamado “Coleção". Nele, o Kid Abelha fazia alguns covers de músicas famosas. Uma delas era “Esotérico", do Gilberto Gil. Eu conhecia o Gilberto Gil de ouvir no carro do meu pai, mas nunca tinha ido muito além. Era o básico: coleção Millenium, “Aquele Abraço”, “Estrela", qualquer coisa das trilhas das novelas. “Esotérico” mesmo era uma dessas canções que eu nunca tinha ouvido na vida e que, na voz de Paula Toller, mudou algo em mim. Com quinze anos é óbvio que eu ainda não tinha tido desilusões amorosas o suficiente pra entender a profundidade da canção, mas o menino da minha sala que tinha nascido no mesmo dia que eu e por quem eu era profundamente apaixonada já tinha me deixado pra ficar com uma garota que eu odiava, então eu acho que era justo dizer que não adianta nem me abandonar porque mistério sempre há de pintar por aí. Um dia ele saberia de tudo. Até que nem tanto esotérico assim; se eu sou algo incompreensível? Meu Deus é mais.
Na última sexta-feira tive a oportunidade de ver o show do Gil e agora com 36 anos, conheço muito mais músicas que “Esotérico”. Tenho que agradecer muito a Paula Toller por esse álbum porque ele foi a porta de entrada pra muito do que eu vim a gostar de música brasileira: dos álbuns antigos do Roberto Carlos até os Mutantes, tudo me veio através de um disco de covers do Kid Abelha, talvez até que tanto esotérico assim, sim. É meio que por causa desse encontro dos quinze que tudo pode fazer tanto sentido aos 36. Mistério sempre há de pintar por aí.
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Eu não tinha necessariamente planejado ir ao show do Gilberto Gil. Calhou que eu tive uma viagem para São Paulo, calhou que meu airbnb era do lado do Allianz e calhou de eu lembrar do show e ver que ainda haviam ingressos disponíveis. Tomei isso como uma espécie de sincronicidade e resolvi ir. Quando Gil entrou no palco entoando “Palco", eu percebi que mais uma vez estava entrando num show que me faria perceber que nada permaneceria exatamente do jeito que tinha sido. Música pra mim tem muito a ver com memória e memória é afeto puro. Afeto no sentido de afetar e ser afetado. A gente só lembra daquilo que mexeu com a gente, seja por amor ou por raiva profunda. Sem música eu não consigo muito bem elaborar o mundo ao meu redor e sempre fico pensando se isso veio por eu ter sido filha do meu pai que sempre tinha muita música com ele, ou se isso veio porque eu e meu pai sofríamos do mesmo mal: a má elaboração completa dos sentimentos mais básicos, de modo que só era possível entendê-los na sua totalidade se houvesse alguém traduzindo tudo pra gente em forma de canção. Chuto que seja um pouco dos dois.
No show do Gil existia algo de metafísico, não só por ele aparecer no palco de branco e, da distância em que eu via, isso lhe dar um ar de santo ou de anjo, mas também porque acho que me conectei com algo maior. Ouço muita música e às vezes esqueço daquilo que me formou há muitos anos. Lembrei do carro do meu pai e de cantigas da minha mãe. Do meu ipod nano. De desilusões amorosas. Festas que eu odiei (“Realce” realmente uma música que segue me irritando). Amores que perdi. Lembrei que eu era brasileira e que talvez essa seja uma das minhas características mais fundamentais. Estive imersa em três horas de música que me mostrou que o melhor lugar do mundo pode ser aqui e agora.
Afasta de mim esse cálice
Minha mãe é profunda fã de Chico Buarque, de modos que cresci ouvindo várias músicas que eu não entendia e com as quais constantemente me assustava. “Cálice” era uma delas. Tem um tom soturno horroroso, falava de vinho tinto de sangue; jamais conseguia entender porque minha mãe gostava de ouvir aquilo, ou porque de vez em quando saia cantarolando pela casa “tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu” (esse sentimento de “Roda Viva” eu entendi mais cedo do que gostaria). Fomos a um show do Chico juntas, e nem me lembro se ele cantou Cálice (arrisco que não), mas lembro de ficarmos completamente embasbacadas quando ele cantou “Geni". Algumas músicas são mesmo um manifesto. “Cálice” que o Chico não cantou no show dele foi cantada no show do Gil e ali foi também um manifesto e foi como se eu tivesse entendido em pouco mais de cinco minutos a importância toda da música brasileira, da arte, de existir, de se movimentar em torno de algo maior. A vida era aquilo ali. A vida era Gilberto Gil cantando “Cálice” depois de uma introdução belíssima do Chico Buarque.
Chico Buarque aparece em um vídeo dizendo que “Cálice” foi escrita na época da ditadura, na época do AI-5. Diz que ela tem mesmo esse tom soturno porque fala de um período soturno. Ele narra a ocasião em que cantou essa música com o Gil e eles tiveram os microfones cortados. Nessa hora o estádio começa a gritar “sem anistia”. Depois que o estádio se cala, Gil começa a cantar de maneira firme enquanto cenas do período da ditadura aparecem nos telões. Começo a chorar sem nem perceber que estou chorando. Sinto medo, alívio e raiva, tudo ao mesmo tempo. Me uno com 50 mil pessoas em um silêncio atento. Quase foi outra coisa, mas que bom que estamos todos com a liberdade de ir a um show do Gil cantar “Cálice” garantida.
Morre e nasce trigo, vive e morre pão
No resto do show, Gil passeia por várias fases da sua carreira enquanto eu passeio por várias fases da minha vida. Lembro do meu pai tocando “A Novidade” e “Não, não Chores Mais” no violão. Nessa segunda choro sem perceber e sinto como se meu pai estivesse pegando no meu ombro pedindo pra eu não chorar mais e garantindo que tudo tudo vai dar pé. Lembro da minha mãe que toda vez que via uma procissão começava a cantar que lá estava indo a procissão se arrastando que nem cobra pelo chão. Lembro de um ex namorado que depois virou amigo e que com 26 anos deixou de existir e não consigo não pensar nas tardes que ouvimos “Domingo no Parque” porque ele gostava muito de Mutantes. Lembro de quando perdi um grande amor e ouvi “Drão” como se fosse uma oração, como se fosse um mantra; a voz do Gil repetindo nos meus fones de ouvido de fio que o verdadeiro amor é vão, estende-se infinito imenso monolito, nossa arquitetura. E quinze mil anos depois percebo que estive certa em me consolar assim porque existe mesmo um vão em mim que foi construído por todas as pessoas que amei e que me amaram muito. Morremos e nascemos trigo, vivemos e morremos pão. E entendo aliviada que tínhamos que morrer pra germinar, não tinha outro jeito de ressuscitar no chão.
Ouço então “Esotérico” e sorrio com os anos que se passaram desde os quinze. Quase vinte. Agora sim já perdi muito mais amores e canto com convicção que pessoas até muito mais vão lhe amar, até muito mais difíceis que eu pra você/ que eu que dois que dez milhões todos iguais. Até que nem tanto esotérico assim. Um lembrete constante de que tudo passa, de que você não morre de amor e nem por amor, que sempre vai haver um outro mistério que sempre há de pintar por aí. Gosto da metáfora aquática da música também que dizia que não adianta nem ficar tão apaixonada e nada e não sabe nada e morre afogada por mim que ao longo dos últimos vinte anos me ensinou que por mais sentimento que houvesse não valia a pena morrer afogada por ninguém. Nadar umas piscinas pra esquecer, talvez.
No fim o show se torna uma festa, canto feliz ao som de uma música que diz que a fé não costuma falhar, levanto os braços dizendo que o o rio de janeiro continua lindo. mesmo tendo nascido em Londrina/PR e percebo que todos a minha volta estão felizes: senhoras de idade, pais com filhos, grupos de amigos, mãe e filha. Mãe e filha dançam um forró quando começam os primeiros acordes de “Esperando na Janela” e agora tenho certeza que o melhor lugar do mundo é aqui - e agora.
Refazendo tudo
Para além da coisa mística do show do Gil, é preciso também falar sobre o Gil músico e cantor que aos 82 anos não perde a forma. Ele segura três horas de show com uma graça que não se vê por aí sempre, ensaia uns passos de dança nas canções mais animadas, reverencia seus músicos e entende que existe uma nova geração que deve ser celebrada. Gil chama Flor Gil ao palco para cantar “Refazenda” e tudo bem que há ali qualquer coeficiente de nepobaby, mas existe certa beleza em ver uma neta cantando com um avô. Há uma certa beleza em ver que as pessoas continuam vivendo através das outras refazendo tudo, refazenda toda. Quando Flor se despede ela não se despede da entidade Gilberto Gil. Ela diz um singelo “tchau, vô” e se vai.
Beleza e também surpresa ao ver Gil chamar ao palco MC Hariel. Alguns rostos chocados ao meu lado veem com certa desconfiança um grande nome da MPB chamar um MC pro palco. Os dois tem uma música juntos; Hariel reverencia Gil e o chama de mestre. Gil agradece e se encanta com o jovem, se diverte com o funk. Gil, aos 82 anos entende mais sobre a continuidade da música do que muitas pessoas da minha idade. Entende a importância que um Hariel pode ter num cenário musical. Não envelhece aos 82. E entende que tudo permanecerá do jeito que tem sido: transcorrendo, transformando.
Você chora diante da beleza?
Vivo num exercício constante de nunca deixar de me emocionar com o banal. De nunca deixar de me encantar ao ver música ao vivo, ao comer uma boa comida, ao ver um grande filme, ao encontrar meus amigos. Quero continuar chorando diante de todas as belezas e fico muito grata de conseguir viver essas grandes e pequenas experiências. Tenho muito medo que o cinismo um dia me pegue. Felizmente me sinto muito viva ao perceber que ainda choro ouvindo uma música que me fazia chorar aos quinze anos de idade. Espero que meu coração siga sendo um músculo em movimento que não envelheça.
Afinal, o que é a vida?
Imensas banalidades.
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Voltamos semana que vem! Semana passada falhei, mas compenso com alguma edição extraordinária. Algum assunto que queiram saber? Deixem nos comentários. Obrigada pelo seu tempo.
Mais um texto da Larissa me fazendo chorar! Lindo, lindo, lindo. Me fez ficar com vontade de conhecer mais da obra do Gil e me perguntar porque todos esses anos não parei pra conhecer mais dele
Lindo e belo texto. Impossível não ir às lágrimas diante de tanta delicadeza. Fico encantado com a sua capacidade de fazer da música um ponto de partida para as coisas da vida — uma verdadeira tempestade de emoções na caixa de entrada do e-mail.