#4 - Essa é a nossa última dança: Aftersun, luto e memórias
Um pouco sobre filmes, saudade e o mês do pensamento mágico*
*esse newsletter pode conter spoilers do filme “Aftersun”
Eu assisti Aftersun durante a maratona de filmes do Oscar num apartamento com uma amiga, no fim de semana no qual fomos assistir o show dos Backstreet Boys. O filme me pegou de jeito, mas não tive muito tempo de elaborar muito além de uma série de tweets e uma review no Letterboxd.
No meu aniversário, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, eu não sei o que era mas essa lua e esse whisky me puseram comovida como o diabo. Aí eu lembrei do filme e sentei pra escrever uma newsletter sobre ele. Apesar da emoção, por alguma razão que eu não sei bem, eu não conseguia acessar os sentimentos que queria colocar no papel. Tudo parecia chato e técnico, o total oposto do que eu queria falar. Eu deixei pra lá. Não ando tendo muito tempo pra escrever. Ou talvez não queira lidar com muitos sentimentos, especialmente nessas duas últimas semanas, e escrever me faz acessar sentimentos de um jeito inesperado.
Dia 06 de abril é aniversário do meu pai. Eu sempre entro o mês de abril intratável, às vezes choro à toa, às vezes brigo com quem não devo. Só depois me vem uma luz de que estamos em uma semana ruim do meu ano. Quando essa luz veio, eu resolvi assistir Aftersun. E depois de chorar feito criança durante quase o filme todo, eu acho que eu tenho algumas coisas para dizer.
(para o azar de vocês, eu sempre tenho algumas coisas para dizer)
I thought that I heard you sing
Memória é uma coisa muito engraçada. Dia desses lembrei daquela música da Pitty que diz que memórias não são só memórias e sim fantasmas que nos sopram aos ouvidos coisas que eu nem quero saber. É um pouco isso. Perder alguém é algo muito dolorido. Perder seu pai de maneira inesperada é provavelmente uma dessas dores que não são comparáveis com quase nada. Eu entrei o mês de abril soterrada com memórias que vinham e voltavam. Os dias que passamos na praia, quando eu era criança. As vezes que eu acompanhava ele no mercado, para a compra do mês, quando minha mãe ficou doente. As caminhadas no parque que frequento muito pouco desde que ele se foi. O dia que ele contou pra todo mundo que tinha um texto meu na home de um portal e disse que ele sempre achava que meu caminho no mundo era mesmo escrevendo. Ele rindo alto com as pegadinhas do Silvio Santos.
Em alguns dias, um lapso de memória me faz esquecer que ele se foi. Eu leio uma notícia ou ando na rua e penso: "Meu pai ia gostar de saber disso". Eu dou dois passos para frente e me lembro de que, quando chegar na casa da minha mãe, ele não estará sentado na mesa. Não há ninguém para quem contar nada. Então, eu ouço o acústico do Capital Inicial, toco um pouco de violão e reviro a caixa de fotos. Tento encontrar a pinta na sola do meu pé, que é igual à dele. Abraço um urso de pelúcia que ele me deu e que não tive coragem de jogar fora. Balanço a cabeça rapidamente e tento afastar pensamentos. Quero lembrar que ele esteve aqui em algum momento e esquecer que ele se foi. Sou como Sophie, a personagem principal do filme, acordando de madrugada e tentando reviver memórias em um vídeo de trinta anos atrás. Quando a ausência chega, só sobra a memória. E a memória é fragmentada. É uma história que tento contar de maneira linear e não consigo. Será que aquilo aconteceu daquele jeito mesmo? Não sei dizer. Mas preciso me lembrar de que meu pai esteve aqui comigo, under the same sky, para esquecer a dor que me traz o fato dele ter ido embora pra sempre.
Baila tu corpo alegria Macarena
Em 1998 nós fizemos uma viagem em família para o Costão do Santinho. Em Aftersun, a personagem principal viaja com seu pai para um resort na Turquia. Aquela era a primeira vez que eu viajava de avião. Eu masquei chicletes na decolagem, segundo recomendou a minha tia, e fui liberada para comprar chocolates superfaturados durante a conexão de quase seis horas no aeroporto.
Sophie ficou muito tempo na piscina, nadou com seu pai no mar, interagiu com crianças mais velhas e jogou sinuca. Eu fiquei muito tempo na piscina com meu walkman, nadei com meu pai no mar e joguei pebolim e ping-pong. Sophie e seu pai dançam ao som de Under Pressure, do Queen, na cena que mais me arrancou lágrimas no filme inteiro. Queen era a banda preferida do meu pai.
Uma das minhas memórias mais vivas da viagem para o resort foi uma vez que saímos do jantar e vimos que tinha uma festa no salão principal. Era uma festa privada, nós não podíamos entrar. Meu pai teve a ideia de se esconder atrás de uma mureta pra que a gente ficasse dançando, porque eu queria dançar. Em Aftersun, Macarena toca durante um jantar. Na minha história, meu pai e eu dançamos a coreografia de Macarena atrás de um arbusto, na nossa festa particular. Eu não tenho registros disso e tenho que confiar na minha memória. Tudo que eu lembro é que eu tinha nove anos e fui feliz. Sophie, no filme, tinha e onze e foi feliz.
Every man has your voice
Em um livro falando sobre a sua obra, Wim Wenders cita o crítico Béla Balázs e diz que o cinema tem a habilidade e a responsabilidade de mostrar as coisas como elas são, além de ter o poder de resgatar a existência das coisas. O Wenders vai um pouco mais longe e completa dizendo que o cinema tem a capacidade de guardar fatos. “A coisa em si pode não estar mais lá, mas você ainda consegue vê-la. A existência dela não foi perdida”.
“Paris, Texas” é um dos meus filmes preferidos. Nele, Travis é encontrado pelo seu irmão enquanto vaga pelo deserto e tem que revisitar sua antiga vida, reencontrando seu filho, Hunter, e depois sua ex-esposa. Uma das coisas que mais me encantam em “Paris, Texas”, além de falar muito de amor em todas as formas, é a capacidade que o filme tem em mostrar como imagens evocam memórias. Hunter retoma sua relação com seu pai depois que o assiste em um vídeo de família. Ao ver o vídeo, ele se lembra que seu pai é seu pai de verdade. A ex-esposa de Travis reconhece sua voz, mas só consegue se conectar a ele quando consegue ver sua imagem. Hunter reconhece a mãe, que não vê há anos, através de um vídeo e das fotos que tem dela. Pedaços de imagem evocam sentimentos dentro de nós. Imagens conseguem eternizar existências. A coisa pode não estar mais lá, mas você ainda consegue vê-la.
Em Aftersun, quando percebemos que Sophie está revendo uma fita de quase 30 anos atrás, de quando seu pai ainda existia, nos damos conta que tudo que vimos ali é um emaranhado de imagem e memória. Quando eu assisto o filme pela segunda vez, entro eu num emaranhado de lembranças e memórias. O cinema resgata a existência das coisas. Talvez também por isso eu goste tanto de filmes. Em Aftersun, eu resgato um pouco meu pai.
O mês do pensamento mágico
Existe um livro de Barthes chamado "A Câmara Clara" no qual ele reflete sobre a morte da mãe. O livro trata de imagem e Barthes relata que, um dia, encontrou uma foto dela. "Eu sabia que, devido a essa fatalidade, que é um dos traços mais atrozes do luto, eu consultaria imagens em vão e nunca mais poderia lembrar-me completamente de seus traços, convocá-los a mim."
Semanas atrás, li "O Ano do Pensamento Mágico" de Joan Didion, em que ela rememora o ano após a morte de seu marido e companheiro de vida. Tanto Barthes quanto Joan Didion, eu e Sophie no filme, compartilhamos uma questão semelhante: uma foto ou um filme nos traz de volta a imagem da pessoa, mas nunca ela por inteiro. Quando Sophie assiste aos vídeos da viagem, ela não tem seu pai de volta. Apenas lembranças dele. Quando revisito tudo o que meu pai me deixou, percebo que é muito, mas não tenho ele de volta. Joan Didion diz que, ao final do ano posterior à morte de seu marido, já começa a esquecer seus traços e sua voz. Em "Paris, Texas", a ex-esposa de Travis diz que todo homem que visitava a cabine tinha sua voz. A memória nos trai o tempo todo. Já não me recordo exatamente da voz do meu pai, e mesmo assim não existe um dia que eu passe sem pensar nele. Talvez a ausência seja uma das coisas mais presentes que o luto nos traz - pedaços da pessoa, mas nunca a pessoa inteira de volta.
Why can’t we give love that one more chance?
Por algum tempo eu tentei evitar de falar do meu pai. Existe uma comiseração das pessoas que, com toda razão, não sabem muito bem como lidar com uma coisa pela qual nunca passaram. A Joan Didion diz que a pessoa em luto parece carregar em si uma marca, algo que só uma outra pessoa em um luto parecido reconhece. Toda vez que eu fazia um post sobre meu pai eu percebia que as pessoas ficavam num misto de pena e um “tadinha, não superou”.
Quando vi Aftersun, me dei conta que a história do meu pai é a minha história. É uma parte de mim, é indissociável. Não faz sentido que eu não reviva minha própria história quando preciso. O luto tem fases. Ao mesmo tempo que se supera tudo, você não supera nunca. Hoje em dia fico triste com muito menos frequência, mas assim como Sophie no filme, não estou imune a acordar em um dia qualquer tentando encontrar meu pai em algum lugar. Ainda que se passem trinta anos. Vez ou outra, eu volto a ser uma criança em um resort dizendo “cadê o meu pai?”. Estranho seria se eu nunca quisesse ele de volta.
O Wim Wenders diz que “A câmera é uma arma contra a tragédia das coisas, sua desaparição”. Alguns filmes pra mim chegam em sentimentos e são sim uma arma contra a tragédia das coisas. Aftersun foi um pouco uma arma contra a tragédia das coisas. Amar ou ter amado profundamente alguém é também uma arma contra a tragédia das coisas. Uma arma diária. Tudo que nós temos.
Deleuze diz que “A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva”. O que fica, de um filme ou da vida, é aquilo que sentimos com ele. E isso é imenso. E se conserva.
Você chora diante da beleza?
Um amigo meu tinha me dito que eu deveria assistir Aftersun porque parecia muito com a menina do filme. Depois de assistir, vi mais similaridades do que esperava: nós duas somos filhas únicas, nós duas tivemos uma viagem a um resort. Eu também gostava de ficar perto de gente mais velha: meus primos, os filhos dos amigos do meu pai. Eu pegava os livros dele pra ler, fazia muitas perguntas. De vez em quando via nele uma tristeza que eu não conseguia entender. Hoje entendo que além de um pai ele era um homem - e às vezes sofria. Nós também cantávamos juntos, mas tinha dias em que ele não queria. Eu também usava meu biquíni por debaixo da roupa por razão alguma. Eu também tenho que recorrer a vídeos pra lembrar que meu pai não existiu só na minha memória. Nós também fomos felizes e tristes, como todo mundo é. Ele fez o melhor que pode. Ele era humano, como todos nós.
A Joan Didion diz que a parte mais difícil da perda do seu marido é ver algo e não poder contar pra ele. Nos últimos dias existe uma imensidão de coisas que eu queria contar pro meu pai: me chamaram pra falar da série do Silvio Santos e eu lembrei de quando víamos juntos Topa Tudo por dinheiro. Eu tenho corrido 8km e nadado 2500m. O apartamento que você me deixou tem piscina, e esse ano eu vou pra lá. Eu queria saber o que ele acharia sobre tantas coisas, imensas e pequenas coisas: contratações do São Paulo e se ele está feliz com o caminho que eu escolhi. Eu tenho estudado, eu tenho lido livros, eu tenho visto filmes e eu não passo um dia sem ouvir música. E por isso eu não passo um dia sem lembrar de você, porque algo em mim é você.
Eu choro de vez em quando diante da beleza que é ter tido, entre todas as pessoas do mundo, meu pai como meu pai. Eu choro diante da beleza de lembrar que eu só uso essa frase porque vimos “Provocações” juntos por anos. A vida é muito complicada, mas a arte conserva. A memória conserva. Acima de tudo, o amor conserva. Todas as vezes que chorei diante de Aftersun, eu chorei diante da beleza do encontro. Chorei de amor. Talvez a única coisa que resista a morte.
Aonde quer que você esteja, feliz aniversário. Eu vou tomar um vinho por nós. Eu tenho 34 e você faria 173, como brincaria a Sophie. E de algum modo, enquanto eu viver, você vai viver pra sempre. This is ourselves.
Até a próxima newsletter! (com um tema mais leve, eu prometo!)
Eu tenho um pai presente e totalmente avesso a mim. Estúpido, grosso, ignorante. Que cooperou em muito para meus fantasmas. Isso me dá a sensação de nunca ter experimentado o que seria verdadeiramente ter um pai por inteiro. Como nunca tive amor, também não sinto falta do que nunca tive, tampouco medo da morte dele. Você, com certeza, tem muito mais do que eu. Apegue-se a isso. Você o teve e ele parte integrante de você, durante sua vida inteira.
Interessante as respostas eventuais da arte, numa série de tv (até meio bobinha) que nada tem a ver com o tema, uma personagem pergunta a mãe, logo após a morte do pai, se ele tinha orgulho dela, do ela fazia, e a resposta dela foi bem singela e delicada:
" _ Claro que sim, ele era seu pai!"
Eu não consigo escrever sobre o meu pai, figura feita pelo meu tio. Esse ano faz 5 anos que ele se foi, decidi viver essa semana conhecendo João Pessoa, de onde ele saiu pequeno e nunca retornou. Me senti em casa, mas estranhamente pensei pouco nele, muito menos do que achei que seria, veio uma voz na cabeça "é, o tempo realmente passa". Quando ele se foi eu estava começando o meu tratamento de ansiedade, eu sempre fico me perguntando o que ele acharia de mim agora, dizem que eu sou engraçada, será q ele, que fazia tanta piada, também passaria a achar? Vai ser uma longa vida sem ele.