#9 As coisas que perdemos no tempo
Silvio Santos, memória e as coisas que nunca mais vão existir
Tenho um rascunho de uma newsletter que deveria ter saído semana passada e falado sobre Olimpíadas. Acontece que, como sempre, me perdi no tempo e meu trabalho e meus outros afazeres engoliram o texto que eu queria escrever. Agora eu acho que preciso escrever sobre outra coisa, mas não completamente outra coisa. Quando eu rascunhava um texto sobre Olimpíadas eu queria falar de memória. Quando penso nesse texto eu de novo quero falar de memória. Esse fim de semana que envolveu a morte do Silvio Santos e outros acontecimentos mais pessoais me fez pensar muito sobre as coisas que perdemos no tempo. Queria falar sobre elas
Aquilo que não existe mais:
Uma das primeiras lembranças que eu tenho de vida e TV é a minha avó na frente da TV assistindo ao programa do Silvio Santos. Alguns sons da tarde do SBT me são muito familiares: o peão da casa própria, o jingle da tele sena, ritmo de festa, a entrada do show de calouros, a vinheta de “Em Nome do Amor”. Tudo isso cria um relicário de lembranças que se mistura com a voz da minha avó respondendo ao “boa noite” do Silvio Santos e a caixinha de sapato na qual ela guardava as tele sena no guarda roupas. Logo que aprendi a escrever me tornei a responsável por preencher os canhotos para o sorteio da tele sena. Achava uma tarefa importante. Nunca me passou pela cabeça, naquela época, que minha avó me deixava preencher os canhotos porque não sabia ler e nem escrever. O mundo da minha avó dependia completamente de uma comunicação falada. O Silvio Santos falava em uma língua que eu e a minha avó conseguíamos ler juntas.
Meu pai tinha uma risada muito alta. Quase escandalosa. Uma das maneiras mais eficazes de ouvir a risada escandalosa do meu pai era colocar a TV ligada na câmera escondida. Não foram poucas as vezes que eu ouvi um “vem cá, Lara!” e esse “vem cá” seguido de uma risada me chamava pra ir assistir com ele o Ivo Holanda apanhando ou alguém tomando susto. Nem todas as câmeras escondidas eram escandalosamente engraçadas, mas eu gostava muito da risada do meu pai. O programa do Silvio Santos fazia com que eu e meu pai pudéssemos rir juntos.
Desde sábado o Silvo Santos não existe mais. Antes disso acontecer já também não existiam mais a minha avó, o meu pai, o Programa Silvio Santos apresentado por ele e as pegadinhas do Ivo Holanda. Todas essas coisas só seguem existindo porque eu me lembro delas. Porque nós nos lembramos delas.
A TV como memória:
O Jesus Martin-Barbero é um dos poucos teóricos sobre TV com os quais eu concordei enquanto estudei TV e Comunicação. Quando se fala de cultura existe uma tendência meio besta e meio acadêmica de levar em consideração um modo europeu de enxergar a cultura de massa. Não foram poucas as discussões que eu tive com colegas e professores porque eles insistiam em dizer que a TV não servia para nada além de alienar as pessoas.
Se você teve o desprazer de abrir a internet no dia da morte do Silvio Santos, você provavelmente se deparou com algum raciocínio desses. O que eu gosto do Martin-Barbero é que ele enxerga que nós, latino americanos, temos um outro tipo de relação com a TV. Uma relação quase afetiva. Uma relação que Teodoro Adorno seria incapaz de compreender. A TV preserva nossas memórias. Barbero inclusive defende que a comunicação em si é uma questão de memória. É só através da memória que diferentes gerações se comunicam. Quando falamos de figuras como Silvio Santos isso se materializa completamente. O Silvio Santos existia com a minha avó, com meu pai e existiu comigo. Através dessa linha do tempo de memórias e ritmos de festa nós no comunicamos.
Claro que eu, minha avó e meu pai tínhamos muito em comum. Mas algo que nós também tínhamos em comum é que todos nós sabíamos cantar a letra de “A Pipa do Vovô Não Sobe Mais". Conceitos que Teodoro Adorno jamais compreenderia.
As coisas que perdemos no tempo
Passei o sábado da morte do Silvio Santos vendo TV e acessando memórias. Os domingos na casa da minha avó. Assistir “Qual É A Música” com a minha tia e tentar acertar com duas notas, maestro, qual é a música. O CD-ROM do “Show do Milhão” que meu pai me deu de Natal. As noites que eu fiz lanchinho pra assistir com a minha mãe “A Casa Dos Artistas". As dezenas de vezes que eu e meus primos repetimos “desenha um arco-iro" e que rimos de chorar assistindo a pegadinha da caveira no cemitério do Topa Tudo por Dinheiro. Memórias e lembranças são coisas bagunçadas. É muito comum que a gente embaralhe tudo e também crie fantasias. Assim como a TV, a memória cria ilusões.
No domingo acordei com a ligação do meu primo dizendo que o pai dele tinha falecido. Eu sei exatamente o quanto dói a materialidade da frase “meu pai faleceu". Ao mesmo tempo que é concreto como uma bigorna, é irreal feito uma ilusão. Não parece lógico que o a vida te tire alguém que você ama tanto do seu convívio diário. Tenho algumas lembranças com meu tio, uma das que eu guardo bem é ele me dando de presente uma cópia gravada do DVD do Charlie Brown Jr Acústico. Eu e meu primo éramos muito fãs da banda e, por muito tempo, aquele foi um DVD que eu amava ver. Eu pensei muito em quando nós éramos crianças, eu pensei muito nos nossos pais. Eu pensei muito nas boas lembranças que tivemos e na dor que compartilhamos. Eu não queria que meus primos entendessem a sensação que é um pai que só existe na memória. Eu não queria que eles também entendessem as possibilidades de vida futura que se perdem no tempo.
Tudo que se preserva:
Nas semanas em que assisti as Olimpíadas fiquei pensando se eu gostaria tanto de esportes se eu não tivesse tido o pai que tive. Também fiquei me perguntando o quanto o amor da minha mãe por esportes não teve aquela máxima do amar aquilo que a pessoa amada ama para poder amá-la mais. Desde que me entendo por gente a TV da nossa casa era ligada em mesas redondas, programas de esporte e nas mais variadas modalidades. Se hoje eu sei as regras dos chatíssimos games do Tênis e dos intermináveis tempos do basquete, é tudo porque meu pai fazia questão de ensinar mesmo que eu não tivesse pedido pra aprender.
Assistir Olimpíadas me deixa com uma sensação de bem estar frente ao mundo que não é sempre que eu consigo experimentar. A sensação de ver um país unido pra assistir um atleta ganhar uma medalha me desarma do cinismo cotidiano. Mostra que ainda é possível acreditar. Quando todo mundo sopra junto pra que um Isaquías consiga ir mais rápido em seu caiaque eu tenho a impressão que ainda conseguimos ser bons.
Eu gosto de trabalhar com TV porque acredito que na frente dela é possível criar as mais variadas memórias. Por muitas vezes eu não tinha tanto assim o que conversar com meu pai mas qualquer “Bem, Amigos” de segunda-feira com ele nos salvava do silêncio. Eu sou são paulina porque meu pai é são paulino. Meu primo é santista porque o pai dela era santista. Toda vez que um desses times cruzar uma bola errada na área ou ganhar um campeonato nossos pais vivem de novo dentro da nossa memória. Toda vez que uma imagem na TV me lembra a infância eu volto a ser a criança que eu era de novo. Tudo se vai, mas tudo se preserva.
Afinal, o que é a vida?
Nesse último fim de semana por algumas vezes pensei que a vida não faz muito sentido. É um emaranhado de acontecimentos aleatórios que muitas vezes descamba em tragédia. Apesar disso tudo, é um emaranhado de acontecimentos aleatórios que também descamba em beleza. Ao mesmo tempo que é muito triste que tudo vire lembrança é muito precioso que tudo vire lembrança. É muito precioso que a gente viva para construir memórias. É dilacerante, mas não deixa de ser mágico.
_______________
Pequena lista aleatória de coisas que gostei:
Nem só me debruçando sobre grandes sentimentos eu vivi as últimas semanas. Gostaria de falar sobre amenidades que gostei:
Os Aspones: Possivelmente a melhor série de humor já escrita por Alexandre Machado e Fernanda Young. Caso te interesse saber do que eu rio, eu rio muito disso aqui. Eu segui semanalmente essa bobagem na Globo em 2004. Não vou fazer disclaimer de humor da época porque a vida adulta exige que você saiba entender que coisas que eram ok em 2004 não são em 2024. Ou você vê alguém usando cinto de strass por aí até hoje? Está na Globoplay.
Música nova: Depois de um longo tempo com a minha cabeça feito um pudim eu pude voltar a me ocupar em ser eu mesma a minha própria Pitchfork e tenho atualizado semanalmente minha playlist de coisas que descubro e gosto de ouvir. É aqui e fica por sua conta e risco porque eu mudo ela inteirinha sem aviso prévio. E falando em Pitchfork, desde 2020 que tenho o ritual de ouvir a playlist deles de descobertas toda segunda-feira. De Turnstile a estranhas bandas japonesas, muito do que eu amo veio daqui.
Academia do prédio: Me sinto uma pessoa muito mais livre desde que larguei a academia paga e voltei a treinar na academia do prédio. Senhoras com camisetões me perguntam como regular a bicicleta e me contam que precisam fortalecer o joelho. Às onze da manhã não tem ninguém. Eu treino com meus halteres enquanto um maluco usa o saco de boxe de maneira completamente irresponsável com um treino que ele certamente pegou no YouTube. É o espaço fitness que eu quero seguir ocupando. Muitos deles vão deixar de aparecer porque se lesionaram com treinos que pegaram no TikTok. A resistência. Minha galera.
Cajuzinho: Hoje minha fisioterapeuta me deu um pote com cajuzinhos que ela fez em casa e eu fiquei pensando quando foi que deixamos de consumir tão bela iguaria. É urgente restituir a tradição e trocar o brigadeiro de leite ninho pelo cajuzinho.
Chay Suede de cabelo comprido: Gato. Procure saber.
_________
Entre grandes sentimentos e pequenas listas seguimos por mais uma semana. Você pode me responder diretamente no e-mail se quiser me contar alguma coisa.
Até semana que vem e, se você chegou até aqui: obrigada pelo seu tempo!
Um texto super comovente sobre memórias! Amei!
Que texto lindo e tocante. Eu chorei pensando nas memórias da TV. Obrigada, Larissa.